Define-se, geralmente, a educação, da seguinte maneira: o conjunto de cuidados dispensados à criança, durante seus anos de formação, para desenvolver-lhe as faculdades físicas, morais e intelectuais. Esta definição é exata mas incompleta. Ela esquece de determinar o porquê dos cuidados a serem proporcionados às faculdades infantis.
James Mill observou bem essa falha. Por isso julgou oportuno completá-la, esclarecendo que a educação tinha por fim fazer do indivíduo um instrumento de felicidade para si próprio e para os outros. Mas não será isso atribuir-lhe uma faculdade que ela não possui? Como poderia ela, por mais perfeita que fosse, assegurar o destino do educando e de seu meio?
Seria esquecer que, neste mundo, ninguém governa as leis que regem os acontecimentos e que, para garantir sua pró pria felicidade e a dos outros, será preciso, pelo menos, o conhecimento do passado; do presente e do futuro. Seria igualmenteecessário dispor da onipotência divina para governar a vida e dirigi-la à sua vontade. Se é verdade que uma boa formação influi no modo pelo qual o adulto saberá enfrentar os embates da vida, não é menos verdade que o problema da felicidade individual ou coletiva não deve ser confundido com o da educação. Quando Platão a define: “A arte de proporcionar ao corpo e à alma toda a beleza e perfeição de que estes são capazes”, ele aproxima-se mais da verdade, pois especifica a hierarquia das perfeições em questão: a do corpo, devendo ser considerada como muito inferior à da inteligência e esta, à da consciência.
Podemos, pois, definir a educação dizendo que ela consiste em formar uma personalidade livre e consciente, capaz de assumir as responsabilidades que lhe cabem, tanto em relação a si mesma como ao próximo. Para obter esse resultado, as faculdades devem ser desenvolvidas e orientadas em vista da prática do bem e das grandes virtudes morais: lealdade, justiça
e caridade na dependência de Deus, soberano juiz e modelo de toda perfeição.
Podemos agora dar um sentido a estas palavras: educar uma criança. Elas exprimem exatamente seu significado. Educar uma criança é indicar-lhe as finalidades a que ela deve tender, é ajudá-la a vencer seus instintos orientando-os pela razão, a desenvolver o .conjunto de suas faculdades, a combater as más inclinações e a cultivar as boas, a adquirir o domínio de si, a orientar seus sentimentos de modo a ensinar-lhe a “elevar-se” a fim de aproximar-se, todos os dias, da Perfeição suprema, isto é, Deus.
A palavra “educar” completa o sentido da palavra “elevar”. É formada de uma dupla raiz: ducere que significa conduzir, e do prefixo e que quer dizer de fora. Educar uma criança é elevá-la a conhecer-se, a sair de seu eu egoísta, para adaptar suas faculdades nascentes às exigências da vida, tanto física quanto moral, é orientá-la para as alturas, ensinando-lhe a desvencilhar-se dos empecilhos criados pelos instintos, é ajudá-la a dominar suas primeiras inclinações para submetê-las às exigências da razão.
Ao nascer, o bebê está sujeito ao determinismo: aos elementos hereditários de sua origem e ao conjunto de condições fisiológicas que o constituem. Portanto, não é livre. Seus instintos e sua compleição, seu temperamento e suas disposições físicas tornam-no escravo de sua natureza. Ele deixar-se-ia arrastar, sem reação, por seus apetites inferiores, se estes não fossem reprimidos e orientados por seus educadores.
A primeira fase da existência da criança é passiva, uma vez que ela não está de posse de sua pessoa. O problema da educação consiste em auxiliá-la a libertar-se, isto é, a conquistar suas faculdades superiores que lhe permitirão agir com uma liberdade cada vez maior. Estas faculdades confundem-se com a razão e a inteligência, a consciência pessoal e o amor
ao bem. Fosse qual fosse o pensamento de Jean Jacques Rousseau e dos partidários da perfeição inata da criança, é uma utopia contrária aos dados mais elementares da observação e aos conhecimentos científicos relativos à hereditariedade, pretender que, abandonando a criança às suas tendências naturais, ela desenvolverse-á espontâneamente no sentido da perfeição moral.
A realidade é bem diferente. Pelo fato de ser herdeira de toda a humanidade e, por conseguinte, das inclinações boas ou más que constituem seu patrimônio, a criança é um misto de tendências opostas que a orientarão igualmente para o bem e para o mal. Ela não é uma criatura nova e sem antecedentes. Recebeu, por herança, a possibilidade de elevar-se às mais altas aspirações ou de deixar-se arrastar pelas paixões mais vis.
Há uma outra consideração que prova, até à evidência, a necessidade da intervenção dos educadores, desde as primeiras manifestações da atividade infantil. Independentemente de nossa vontade, ao nascer, a criança não conhece outras exigências além de seu “eu”, daí resultando sua tendência em absorver tudo à sua volta, isto é, de orientar-se para um egoísmo inconsciente, propenso a crescer e a desenvolver-se, se a autoridade não intervier para obrigá-la a adaptar-se às exigências do bem comum. Na verdade, a ·educação apresenta-se como uma luta entre os instintos cegos e egoístas, que buscam satisfazerem-se a qualquer preço e a razão representada pelos educadores procurando reprimi-las ou orientá-los. Não é de improviso que o educando aceita submeter-se às leis morais cujo valor ele ignora e que dele exigem numerosos sacrifícios. Os educadores e, em
primeiro lugar, os pais, receberam a missão de transmitir essas normas, que constituem o resultado de uma longa experiência da humanidade; e pelas quais as crianças deverão pautar sua conduta. Contudo, esse ideal só será atingido se os responsáveis aplicarem a ascendência e a autoridade que lhes foram confiadas pela natureza, em vista de orientar e corrigir os instintos cegos, porque não conhecem outra lei a não ser a satisfação pessoal.
Por paradoxal que pareça, pode-se afiirmar que a paixão em estado puro, se assim podemos dizer, só se encontra na criança muito pequena ou no recém-nascido.
A paixão é um desejo que tende a satisfazer-se por todos os meios. Quanto mais cega mais violenta. Assimne nenhum argumento da razão, nenhuma consideração de ordem moral, nenhun julgamento pessoal poderão intervir para alterar seu curso ou reprimir seus impulsos. É o caso do recém-nascido
que, mal sente qualquer satisfação corporal, quererá renovar o prazer, para isso lançando mão de todos os recursos ao seu alcance. Por seus gritos e suas cóleras, impõe-se contra todos os obstáculos e, a todo custo, procura repeli-los. Perguntemo-nos com assombro o que aconteceria se em vez de encontrar-se num estado de impotência, ele fosse dotado de uma força muscular semelhante à dos adultos. Seria a luta sem tréguas com quem quer que se opusesse às suas exigências.
Não tendo ainda esclarecimento algum, a criança é incapaz de discernir as vantagens ou desvantagens dos desejos que pretende satisfazer. Compete, pois, ao educador indicar-lhe os que merecem ser estimlados e os que serão conbatidos.
É, baseando-se nesse argumento, que se verifica quão legítimo e necessário é o exercício da autoridade. A Providência põe à disposição do educador os meios para ele conseguir dominar as paixões da criança e orientá-las em proveito de seu desenvolvimento físico e moral. O castigo e a recompensa serão empregados alternadamente na formação dos primeiros hábitos que muito influenciarão na consciência moral.
A educação supõe por conseguinte, uma colaboração constante entre as energias espontâneas da criança e a influência do educador. O homem perfeito não se molda sozinho. Precisa ser ajudado por aqueles que são os depositários das experiências morais da humanidade e receberam a missão de transmiti-las à alma infantil. Esse encargo compete aos educadores em geral, e de modo particular, aos pais, na qualidade de autores responsáveis pela vida do filho.
O que desvirtua, muitas vezes, a educação é a ausência de ideal dos seus responsáveis. Assemelham-se a um escultor insensato que, so pretexto de entender do ofpicio, projetasse ao acaso, golpes de cinzel num bloco de mármore, sem ter-se dado ao trabalhode representa-se previamente a imagem ideal da obra. Deus confia aos pais o filho, bloco informe da matéria humana, herdeiro de todos os germes bons ou maus, que se acumularam na raça do decorrer dos séculos, e eles pretendem formar sua alma e sua consciência sem haverem refletido, de antemão, sobre o ideal moral que orientará seus esforços.
Distribuem, a êsmo, golpes de martelo ou cinzel, alegrias e tristezas, ternuras ou severidades, semcogitarem das consequências. Lastimar-se-ão, mais tarde, que o adulto saído de suas mão inábeis seja um composto informe de paixões indisciplinadas, embora recaia sobre eles próprios toda a responsabilidade do fracasso.
A educação jamais deve ser abandonada ao acaso dos caprichos, fantasias e disposições do educador. Precisa apoiar-se sobre princípios morais capazes de esclarecer o valor dos métodos empregados, levando em conta a diversidade dos caráteres e dos temperamentos.
Os pais que alimentam para seus filhos sonhos de ambição terrestre bão terão sobre eles uma boa influência como os que tem como primeiro cuidado incutir-lhes o culto do dever. Os que têm em mira o dinheiro e as riquezas temporais, não empregarão os mesmos métodos educaionais do que aqueles que só ocnsideram os valores de ordem espiritual. Os que dão às crenças religiosas um valor superior a todos os outros, orientarão o espírito da crianças num sentido contrário ao dos que julgam inúteis, quando não, perigosas. O Estado que não tem outra preocupação além de fazer do cidadão o escravo de suas ambições, não conceberá a educação sob o mesmo prisma que a Igreja, preocupada, acima de tudo, em torná-lo um ser livre, servo de Deus e do próximo.
É preciso, pois, de início, definir, em suas linhas gerais, o ideal a que deverçao tender os esforços dos responsáveis empenhados em prepararem o educando para realizar, de uma forma tão perfeita quanto possível, sua vocação de homem e cristão.
Uma vez que o home não foi criado unicamente em vista de um destino terrestrem mas é chamado a participar, um dia, da própria vida de Deus, o educador deve procurar, primeiramente, criar em seu coração um ideal religioso e moral tão elevado quanto possível e, por conseguinte, habituá-lo a viver sob o olhar divino. A criatura humana só poderá atingir o fim supremo do seu destino, esforçando-se, aqui na terra, por praticar toda a perfeição ao seu alcance, orientada pelos métodos educacionais.
A conquista do ideal, que se visa a incutir no espírito da criança, não deve ser parcial nem fragmentária. Todas as faculdades convergirão para esse fim e as diferentes atividades infantis são outras tantas etapas que aproximam do alvo, isto é, do homem perfeito.
Um grande número de erros nos métodos empregados pro-
vêm da falsa noção da felicidade da criança. É natural que os pais, a menos que sejam monstros, preocupem-se em assegurar, tanto quanto possível, a felicidade do filho. Mas daí não se conclui que eles tenham a faculdade de dispor, à sua vontade, do futuro do mesmo. Esse futuro pertence a Deus e ninguém pode prever os caminhos pelos quais a Providência o conduzirá.
Embora os educadores: tenham o direito de proporcionar à criança, sobretudo nos primeiros anos de sua existência, as alegrias que contribuem para seu desabrochar, devem zelar para que estas se orientem sempre no sentido do esfôrço. Mimar o filho, sob pretexto de que ele terá bastante tempo para sofrer, é desenvolver-lhe os germes de egoísmo que, mais tarde, serão fonte de muitas desgraças, tanto para ele próprio como , para os outros.
Para garantir a felicidade do educando, seria preciso; como
já o observamos, possuir todo o poder e toda a ciência de Deus,
numa palavra, ser o próprio Deus. Não está ao alcance dos
pais preverem-lhe o futuro, nem determiná-lo a seu gosto, assim tampouco, como não podem afastar-lhe do caminho as circunstâncias dolorosas ou torar favoráveis os contecimentos. Os sentimentos da alma escapam-lhes, sem que lhes seja facultado impedi-los de tornarem-se uma fonte de tentações. Acreditar nessa possibilidade seria um sonho perigoso e a causa de inúmeras desilusões.
Consciente de tal incapacidade, o educador não se empenhará tanto em suprimir as dificuldades e os sofrimentos da vida como em proporcionar à criança os meios de vencê-los e
dominá-los sem, no entanto, perder de vista que a felicidade
perfeita pode ser atingida no outro mundo.
O esquecimento dessas verdades elementares acarreta êxi-
tos aparentes que equivalem a pesados fracassos. É o caso dos pais que poupam aos filhos os sofrimentos e as preocupações ou acumulam para os mesmos o máximo de riquezas. Na maioria das vêzes, transformam em ineptos e gozadores, criaturas capazes de grandes realizações se tivessem sido obrigadas a maiores esforços, não tendo a perspectiva de uma situaçãq já assegurada. Assim, também, os responsáveis, cuja preocupação capital é a saúde, poderão, talvez, criar seres robustos, porém, muitas vêzes, em detrimento de seu valor moral.
Em educação há somente um êxito verdadeiro: proporcionar à criança as energias e qualidades físicas, morais e espirituais que permitir-lhe-ão vencer as dificuldades da vida, enfrentar todas as eventualidades sem jamais desanimar e mostrar-se, em tôdas as circuntâncias, felizes ou infelizes, fiel ao ideal
moral depositado em sua alma.
Uma vez que a felicidade não é deste mundo, os pais devem
ter sempre em mente que o filho chocar-se-á com as mesmas dificuldades, na existência, que eles próprios tiveram de enfrentar.
Portanto, se quiserem prepará-lo para a vida, não procurem
criá-lo poupando-lhe sacrifícios. Ensinem-no a suportar a dor, a fazer do trabalho seu pão cotidiano, e a procurar sua felicidade na dos outros. e não em egoístas satisfações passageiras. Os sucessos e êxitos materiais não proporcionam ao coração as alegrias comparáveis às do dever corajosamente cumprido e da dedicação generosa. A verdadeira felicidade, neste mundo depende das disposições interiores da alma e não da riqueza e das facilidades materiais. . A criança, educada em função dos valores morais, não conhecerá as decepções e os desânimos que, fatalmente, assaltam a que tiver sido criada para a felicidade ilusória.
Em resumo, o educando que tiver sido, sistematicamente, preservado de sacrifícios será, no final, o mais infeliz dos homens. Impotente e desesperado diante das provações, ele sofrerá infinitamente mais do que aquele que tiver sido acostumado a vencê-las desde a mais tenra idade. Muitas mães preparam a desgraça do filho, julgando preparar-lhe a felicidade. Não compreendem que a lei da vida é a do parto e que quem for incapaz de aceitar-lhe as dores, jamais conseguirá realizar uma vocação verdadeiramene digna deste nome.
Educar a criança é levá-la a descobrir, progressivamentem os verdadeiros valores da vida, ajudando-a a conquistá-los, a fim de que possa, um dia, cumprir sua vocação pessoal pelo desenvolvimento gradativo de suas faculdade e pelo senso de suas responsabilidades diante de si mesma, de Deus e do próximo.
Capítulo I do livro: “Pequeno Tratado da Educação” de Jean Viollet.
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